terça-feira, 29 de novembro de 2016

Brasil. A responsabilidade política pelo caos carcerário e o PL n° 4.373/16.

Foto - Projeto de Lei nº 4.373/16
Por Vanessa Morais Kiss, advogada e agente de Pastoral Carcerária.

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 4.373/16, que cria a Lei de Responsabilidade Político-Criminal, apresentado pelo deputado federal Wadih Damous (PT/RJ), que prevê que toda proposta legislativa que crie novos crimes, aumente as penas previstas para os já existentes ou torne mais rigorosa sua execução deverá ser submetida a um estudo prévio de seus impactos sociais e orçamentários, contendo dados estatísticos e projeções de custos.

Segundo a justificativa apresentada, o projeto surge num contexto de profusão de propostas de leis penais e processuais penais que, sem quaisquer investigações empíricas ou estudos técnicos prévios, acabam sendo votadas por parlamentares que desconhecem a dimensão das suas consequências concretas. 

Consequência disso, segundo o texto, é a constatação de que “após a redemocratização, o Brasil criminalizou mais que o dobro em praticamente metade do tempo, em comparação com o período da ditadura militar”, o que, além de evidenciar a inversão lógica no uso do Direito Penal, que deveria ocorrer apenas como último recurso, põe em cheque a própria efetivação do regime democrático.

O debate sobre a responsabilização pelas consequências do punitivismo irracional, que motiva o projeto, faz-se essencial em tempos de caos carcerário já declarado pelo Supremo Tribunal Federal que, no julgamento da ADPF nº 347, em 2015, reconheceu o estado de coisas inconstitucional existente no sistema prisional brasileiro, caracterizado por um quadro de violação generalizada e sistêmica de direitos fundamentais.

Todavia, ao mesmo tempo em que a mais alta instância judiciária do país reconhece a situação insustentável produzida pela onda punitiva, somos confrontados a todo momento com iniciativas legislativas da mais grave irresponsabilidade política na área penal, cuja ilustração máxima, atualmente, são as chamadas “10 medidas” articuladas pelo Ministério Público Federal que, a pretexto de combater a corrupção, atacam sem o menor constrangimento direitos e garantias tão fundamentais como o habeas corpus, instrumento por excelência de defesa da liberdade.

Não se trata, contudo, de um problema novo. Em artigo citado na exposição de motivos do projeto, Salo de Carvalho aponta como problema patológico das reformas penais no Brasil a absoluta ausência de estudo de prévio dos seus efeitos, sobretudo no caso de normas penais que direta ou indiretamente ampliam hipóteses de incriminação. Assim, partindo da premissa de que a opção político-criminal pelo recrudescimento da repressão penal deve implicar deveres e responsabilidades para o gestor público, propõe a adoção de um estudo prévio que vincule o projeto à investigação de suas consequências para a administração da Justiça Criminal e à existência de dotação orçamentária que o contemple (CARVALHO, Salo de. Em defesa da lei de responsabilidade político-criminal. Boletim IBCCrim, São Paulo, ano 16, n. 193, p. 8-9, dez. 2008).

Nessa perspectiva, o PL nº 4.373/16 condiciona as propostas legislativas penais a um estudo prévio de impacto que deve abranger as dimensões social e orçamentária. Do ponto de vista social, deverão ser avaliados o número de novos processos submetidos a julgamento, a quantidade de novas vagas necessárias nos estabelecimentos penais e as implicações da criminalização e dos aumentos de pena na vida coletiva. No caso de proposta que trate de aumento de pena ou restrição para progressão de regime, a análise de impacto social pode ser suprida pela indicação de medidas alternativas compensatórias que impliquem redução de pena ou ampliação de benefícios de progressão em outro delito de igual de natureza.

Sob o ângulo orçamentário, propõe-se a investigação dos custos estimados da criação de novas vagas em estabelecimentos penais e da demanda acrescida para o poder Judiciário, análise que poderá ser suprida pela indicação das fontes de recursos a serem empregadas para custear as medidas propostas.

O Projeto prevê ainda a instituição, no âmbito da Câmara dos Deputados, de um Conselho de Análise composto por representantes do Poder Judiciário, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), do Ministério Público, da Defensoria Pública, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que, com base nos estudos apresentados, emitirá parecer a ser anexado à proposição legislativa, a fim de informar os debates e deliberações.

Em suma, busca-se, com o PL nº 4.373/16, “fornecer elementos e qualificar as discussões quando do tratamento desses projetos de lei e, quem sabe, trazer de volta a racionalidade no debate sobre o direito e o processo penal”, de modo a conter os males de seu uso desmedido.

O Projeto já recebeu parecer favorável do relator, o Deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), e desde agosto aguarda apreciação pela Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público e, em seguida, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania.

Em nota de apoio ao Projeto, a Rede de Justiça Criminal destacou que o Estado brasileiro, em matéria de segurança pública e justiça criminal, tem historicamente agido de forma reativa e emergencial, sem um planejamento adequado embasado em dados consistentes e sem mecanismos que possibilitem a revisão das práticas correntes diante da constatação de falhas e abusos. 

Nesse sentido, submeter a política criminal às mesmas diretrizes que impulsionaram a legislação sobre responsabilidade fiscal – planejamento, transparência, controle e responsabilização – contribuiria para a superação do atual estado de persistência no erro de um sistema em que se perpetuam práticas institucionais discriminatórias e ineficientes.

É fundamental levar em consideração, também, o componente de responsabilidade do Poder Judiciário nessa seara. Embora seja de conhecimento geral a incompatibilidade entre as condições das prisões brasileiras e a perspectiva ressocializadora idealista presente na Lei de Execução Penal, opera-se na prática como se ela correspondesse à realidade, resultando na produção em série de decisões que contribuem para agravar o quadro atual de violação sistemática de direitos. Nesse contexto, a discussão sobre a responsabilidade político-criminal surge como um possível caminho para o regate da racionalidade no debate legislativo e, ao mesmo tempo, como um meio de redução de danos com o potencial de provocar fissuras na cultura do aprisionamento, até que transformações maiores sejam possíveis.

Nas palavras de Salo de Carvalho: “O estado atual dos cárceres diz da forma como a sociedade brasileira resolveu historicamente suas questões sociais, étnicas, culturais, ou seja, pela via da exclusão, da neutralização, da anulação, da alteridade. (…) Neste quadro, a imposição de critérios de responsabilidade e de responsabilização do legislador quando de sua adesão ao projeto punitivista pode minimizar os impactos do embevecimento com a cultura do encarceramento em massa” (CARVALHO, Salo de. Em defesa da lei de responsabilidade político-criminal. Boletim IBCCrim, São Paulo, ano 16, n. 193, p. 8-9, dez. 2008).


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