A nossa compatriota Maia Romenets, que vive no Peru desde 1972, entusiasmou-se pela busca de materiais sobre a fragata russa Aurora. Esta embarcação era uma belonave de 44 canhões, um dos últimos representantes da frota de veleiros da Rússia. Em 1854, ela fez escala de duas semanas no porto peruano de Callao. A pesquisadora conseguiu recolher de grão em grão nos arquivos históricos da Rússia e do Peru a história desta fragata.
Maia Romenets encontrou informações sobre dois tripulantes da Aurora
que sofreram de escorbuto grave durante a longa navegação e que
pereceram durante a estadia do navio na enseada de Callao. Maia como que
sentiu um choque quando soube que estes dois marinheiros russos tinham
sido sepultados na ilha peruana de São Lourenço. Em 2008, a Associação
de Compatriotas Russos no Peru, chefiada por Maia Romenets, instalou em
homenagem à sua memória uma cruz ortodoxa nesta ilha. Foi rezada uma
missa em recordação dos marinheiros russos que tinham encontrado a sua
última morada na terra estranha. Infelizmente, os nomes destas pessoas
continuavam desconhecidos.
A fim de esclarecê-lo, foi decidido fazer um
requerimento ao Arquivo da Marinha de Guerra de São Petersburgo. E que
lance de fortuna! A mensagem de resposta que chegou a Lima informava que
na ilha peruana de São Lourenço estavam enterrados os marinheiros da
fragata Aurora Vassili Igumnov e
Malofei Kurochkin. Em abril de 2009, na cruz foi fixa uma placa de
bronze com os seus nomes, recuperados do esquecimento. A partir de
então, os marinheiros peruanos da guarnição local cuidam deste túmulo
juntamente com a Associação de Compatriotas Russos. O ministro das
Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, visitou em outubro de
2008 durante a sua estadia em Peru a ilha de São Lourenço e depositou
flores junto do pedestal da cruz ortodoxa.
Por que razão teria a Aurora
ido parar naquela época longínqua junto do litoral peruano? A fragata
realizava uma viagem da base naval báltica de Kronstadt rumo ao litoral
leste da Rússia. Depois de atravessar o oceano Atlântico e contornar o
cabo Horn, o navio entrou nas vastidões do oceano Pacífico já bastante
afetado por tempestades. No porto peruano de Callao, a fragata Aurora
supriu os estoques de alimentos e de água doce mas teve que permanecer
aí mais algum tempo devido à necessidade de fazer reparações. Como se
soube depois, ficou numa armadilha. Acontece que, por esta altura, na
Europa já tinha começado a guerra que foi chamada mais tarde Guerra da
Crimeia.
No conflito armado pelo domínio sobre o mar Negro e os Bálcãs,
estavam implicadas a Rússia e a coalizão do Império Otomano, Inglaterra e
França, que lutava contra ela. O principal teatro de operações
militares foi a península da Crimeia. Mas a Aurora
poderia enfrentar um combate naval contra as forças superiores do
inimigo mesmo neste local, situado tão longe da Europa. É que no
anteporto de Callao estavam fragatas de uma esquadra anglo-francesa. O
capitão da Aurora, Ivan
Izilmetiev, – um navegador experiente e corajoso, – mandou reunir a
tripulação.
O marinheiro Gavriil Tokarev reproduziu da seguinte maneira o
apelo que o capitão tinha feito nesta ocasião à tripulação: “Rapazes!
Recordem, eu lhes disse que devemos estar prontos para a guerra contra
os ingleses e franceses. De acordo com certos boatos, a guerra já foi
declarada mas a respetiva notícia não chegará a Callao antes do domingo e
é possível que os navios que se encontram no anteporto local venham a
perseguir-nos. Vejam de que maneira podemos sair disso merecendo uma
condecoração – a Cruz de São Jorge! O mais importante é não criar
agitação mas disparar a sangue frio, como se fosse um treinamento”.
Os
marinheiros russos estavam prontos para o combate. Mas o capitão
continuava a pensar no modo de escapar da armadilha em que a Aurora
ficara. Intensificou os preparativos para a passagem da fragata para os
mares russos. As reparações eram feitas 24 horas por dia. Durante
alguns dias, a tripulação executou um trabalho que exigia normalmente um
lapso de tempo muito maior. Os marinheiros fizeram tudo o que deveriam e
estava ao seu alcance: calafetaram bem o casco, consertaram as velas,
reforçaram os mastros. Esta urgência não foi em vão.
Todos sabiam que os
tripulantes dos navios ingleses e franceses observavam permanentemente a
Aurora através de óculos de
alcance a fim de impedir a sua saída do porto. Depois de se certificarem
de que o navio estava pronto para uma longa viagem, o capitão resolveu
aproveitar o tempo nebuloso – levantar âncora bem cedo de manhã e sair
impercetivelmente da enseada. Foram lançadas na água sete escaleres de
dez remos cada um que rebocaram a fragata para fora dos limites do
ancoradouro. Graças à neblina, os vigias dos navios ingleses e franceses
não perceberam que a Aurora se
deslocava com velas recolhidas. Depois de ultrapassar os limites do
campo de visão, os marinheiros russos içaram as velas e a fragata
desapareceu no oceano antes que o inimigo conseguisse organizar a sua
perseguição.
As buscas do navio russo resultaram inúteis. A Auroranavegou
no oceano 66 dias sem uma única escala e, depois de ultrapassar uma
distância enorme, chegou ao litoral pacífico da Rússia. A fragata
participou da defesa da cidade de Petropavlovsk-Kamchatski, que tinha
sido atacada pouco tempo depois por uma esquadra anglo-francesa. Na
Crimeia, o desenrolar da guerra resultou desfavorável para os russos mas
em Petropavlovsk-Kamchatski o inimigo foi rechaçado com grandes perdas.
Em abril de 1855 a Aurora saiu
juntamente com vários outros navios de Petropavlovsk-Kamchatski em
direção à foz do rio Amur – estes territórios russos também necessitavam
de proteção.
A belonave permaneceu aí até o fim de guerra. Depois da
conclusão da paz, ela prosseguiu na viagem de circunavegação, a última
navegação deste gênero para os veleiros militares da Rússia. Em 1857 a Aurora
retornou ao mar Báltico. A coragem demonstrada durante a defesa de
Petropavlovsk-Kamchatski valeu ao capitão Ivan Izilmetiev a condecoração
com a ordem de São Jorge.
O cientista Leopold Schrenck, que se encontrava a bordo da Aurora,
também retornou a Petersburgo desta viagem longa e perigosa. Durante a
escala curta no Peru, ele participou juntamente com os colegas peruanos
das escavações do antigo povoado de Limatambo. Fez isso apesar do
ambiente nervoso que reinava em torno do navio e da febre-amarela que
grassava então em Lima. Vários marinheiros tiveram a permissão do
capitão para ajudá-lo. Quando chegou o momento de despedida do Peru,
Schrenck teve que renunciar com grande desgosto à continuação das
escavações. O cientista trouxe para a Rússia achados arqueológicos
interessantes – 60 objetos sobre a cultura e de vida dos índios que
habitavam esta região nas épocas remotas. Esta foi a primeira coleção de
antiguidades peruanas na Rússia que pode ser vista ainda hoje no Museu
de Antropologia e Etnografia de São Petersburgo.
Além disso, Leopold
Schrenck adquiriu numa pequena loja no centro de Lima 78 aguarelas e
desenhos da autoria de Pancho Fierro, – um artista popular do Peru. O
cientista russo ficou maravilhado com o colorido e realismo dos quadros
da vida da sociedade peruana daquela época. Agora, estas obras
magníficas são propriedade da Academia de Ciências da Rússia e
representam a maior coleção de obras deste artista fora dos limites do
Peru.
Qual foi o destino da Aurora e do seu capitão?
Ivan
Izilmetiev foi promovido a contra-almirante e nomeado chefe do
estado-maior do porto de Kronstadt, principal base naval da esquadra
russa do mar Báltico. Um contratorpedeiro, posto ao serviço em julho de
1916, foi nomeado, em homenagem a este corajoso navegador, “Capitão
Izilmetiev”. Durante a Primeira Guerra Mundial este navio participou de
batalhas navais no mar Báltico.
Mas, depois da Revolução de Outubro, a
belonave com o nome deste capitão eminente da marinha de guerra russa,
foi rebatizada, passando a se chamar Lenin.
Aliás, este “rebatismo” injusto foi naquela época o destino triste de
muitos outros navios de guerra russos. Era a época em que se riscavam
imerecidamente muitos nomes gloriosos que constituíam o orgulho da
Rússia antiga.
O contratorpedeiro Lenin
deixou de integrar a esquadra do mar Báltico em junho de 1941, depois
do ataque da Alemanha fascista contra a União Soviética. O navio estava
nessa altura no porto letão de Liepaj para reparação e a sua própria
tripulação destruiu-o para evitar que ficasse nas mãos do inimigo.
Quanto à fragata à vela Aurora,
esta, depois de expirado o prazo do seu serviço, foi desmontada e posta
à venda. Isto se deu em 1861. Tinha chegado a nova época de navios de
aço. Mas o comando da marinha de guerra da Rússia pré-revolucionária não
queria esquecer o veleiro de madeira que se glorificara nas batalhas
contra a esquadra anglo-francesa junto de Petropavlovsk-Kamchatski.
Poucas pessoas sabem que um cruzador construído em 1900 no estaleiro de
São Petersburgo recebeu o seu nome precisamente em homenagem a esta
fragata.
O cruzador Aurora foi
lançado à água durante uma cerimônia solene, comandada pessoalmente pelo
imperador Nicolau II, na presença de numerosos membros da família
imperial. Mas, em 1917 o navio ficou nas mãos de marinheiros
revolucionários e o seu canhão de proa deu o tiro que serviu de sinal
para o assalto ao Palácio de Inverno e anunciou o início da Revolução de
Outubro na Rússia. Na época do poder soviético, o cruzador Aurora
obteve um ancoradouro eterno e ainda hoje está atracado no cais do rio
Neva na qualidade de monumento da história nada simples do nosso país.
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